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O TEMPO jornal de fato

A CARTA DA VIDA

Antonio Carlos “Bolinha” Pereira, 75 anos

Ele não quis acreditar, ao ser interrompido pela enésima vez enquanto preparava o desfecho. Agora era a campainha a soar, insistente. Antes atendera uns quinze telefonemas (talvez tivessem sido apenas três, ou quatro, mas quem discordaria?) e por duas vezes fora distraído pela sirene dos bombeiros (ou do SAMU, como saber?). Sem contar os latidos daquela cachorrada do terreno ao lado e as discussões do casal do andar inferior, alguém precisava falar praqueles dois se separarem de uma vez!

Relembrou tudo isso enquanto calçava os chinelos e colocava uma camiseta para atender a porta. Pensara ter demorado pouco, mas já não havia ninguém quando, mal humorado, ia perguntar o que alguém poderia querer com tanta insistência, tão chateado ficara em se desconcentrar por nada! Soubesse que iriam desistir de esperar nem teria vindo, podia ter feito de conta que já fizera o que havia pensado em fazer, e pronto!

Lembrou que por mais de uma vez já quisera trocar aquela campainha, com seu tom estridente a incomodar, mas onde achar alguém para fazer um simples serviço como esse sem cobrar os olhos da cara? Pegou-se a pensar em como funciona uma campainha, imaginou a energia elétrica correndo silenciosamente por um fio e fazendo explodir aquele som agudo, irritante.

Mas, ao fechar a porta, percebeu um envelope que haviam empurrado por baixo da porta e ficara oculto pelo tapete, agora saberia quem o interrompera e por que era tão importante assim virem importuná-lo naquelas horas, por quê? Agachou-se e apanhou o envelope, ou melhor, apanhou do envelope, pois voltar à posição anterior foi muito dolorido, e a dor nas costas o fez lembrar do que estava por fazer quando soara a campainha.

Curiosidade aguçada, tratou de abrir o envelope, que trazia seu nome em manuscrito. E lembrou que, quando começara, escrevia à mão pois o ajudava a pensar, até lera certa feita que isso fazia melhorar o raciocínio, a linguagem e a memória. Dizia a matéria que pesquisadores do departamento de psicologia e neurociência de uma universidade americana, utilizando um aparelho de ressonância magnética, haviam detectado maior atividade neural no cérebro de crianças que praticavam a escrita à mão, em comparação com outras que apenas colocavam letras numa tela.

Já as imagens de cérebros de adultos analisadas por outra universidade, também americana (como esses gringos gastam tempo e dinheiro nessas pesquisas!), indicaram que os movimentos sequenciais das mãos, necessários para a escrita, ativam as áreas cerebrais responsáveis pelo raciocínio, linguagem e processamento da memória.

O pensamento voou ao recordar que, quando redigia um livro, só conseguia ter ideias muito boas quando escrevia à mão, pois teclando na tela do computador sentia o texto ficar impessoal, chato e insípido.  Percebera que pensava melhor quando manuscrevia seus textos, corrigindo e rascunhando até perceber que expusera as ideias de forma clara e organizada, e isso o deixava satisfeito com o resultado. Mas hoje, com essa geração que já nasce conectada a alguma engenhoca eletrônica, isso está ficando pra trás.

Enfim, sentou e leu o texto, caprichosamente caligrafado:

Prezado Senhor

Escrevo estas mal traçadas linhas para lhe confessar algo que nem mesmo aos mais íntimos ousei contar. Estive para tirar a vida neste final de semana. Tudo parecia dar errado para mim, mas nem vou entrar em detalhes que não lhe interessariam, pois não quero perturbar quem me impediu de cometer este gesto trágico.

Você me levou a pensar que o importante é viver e não ter vergonha de ser feliz e por isso quero cantar a alegria de ser um eterno aprendiz e com a pureza da resposta das crianças, poder dizer que a vida é bonita.

Sim, preciso lhe contar, só não atentei contra minha própria vida graças ao seu conto “E A Vida, O Que É?”

Ali reencontrei a alegria de viver, pois seu alto astral, seu estilo, tão “de bem com a vida”, me reanimou e fez esquecer o dia horrível que eu tivera.

E o que me fez mandar meus demônios de volta pro inferno (de onde eles não deveriam ter saído para me perturbar) foi a citação da poesia do Gonzaguinha no final do seu texto: “Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será! Mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita...”

Deus o Abençoe!

Um Leitor Agradecido

Aquilo o atingiu em cheio! Leu e releu aquelas poucas linhas. Chorando, foi até a pia e jogou pelo ralo o veneno que cuidadosamente preparava para ingerir quando a campainha, tão insistente, soara meia hora antes.

(“O Que É O Que É?”, 1982, autor Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior –1945 +1991)


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