Prof. Dr. Adelcio Machado dos Santos Jornalista (MT/SC 4155)
Desde seu surgimento no final do século XIX, a psicanálise vem dialogando com diversas áreas do saber, sendo a filosofia uma de suas interlocutoras mais constantes e fecundas. O encontro entre filosofia e psicanálise não é casual: ambas se voltam para as grandes questões da existência humana — o sofrimento, o desejo, a liberdade, a ética, o inconsciente e a verdade. Embora suas abordagens sejam distintas, seus caminhos frequentemente se cruzam, proporcionando uma interação que amplia o alcance teórico e prático de cada uma.
A filosofia, com sua tradição milenar, sempre se ocupou das questões fundamentais sobre o ser, o conhecer e o agir. Já a psicanálise, fundada por Sigmund Freud, emerge como um método clínico e uma teoria sobre a mente humana, especialmente os processos inconscientes que escapam à racionalidade. Apesar de sua origem médica, a psicanálise logo revelou ambições mais amplas, lançando luz sobre os fundamentos da cultura, da linguagem, da religião e da moral — domínios tradicionalmente investigados pela filosofia. O próprio Freud não hesitou em dialogar com pensadores como Platão, Nietzsche, Schopenhauer e Kant, ainda que muitas vezes de modo indireto ou crítico.
Um dos pontos centrais da intersecção entre filosofia e psicanálise é a concepção de sujeito. Enquanto a filosofia moderna, especialmente a partir de Descartes, estabeleceu o sujeito como fundamento do conhecimento ("penso, logo existo"), a psicanálise veio problematizar essa centralidade. Freud mostrou que o eu não é senhor em sua própria casa, colocando em evidência a divisão interna do sujeito, sua submissão a pulsões inconscientes, desejos reprimidos e estruturas simbólicas. Jacques Lacan, mais tarde, aprofundaria essa crítica, reinterpretando Freud à luz da linguística estrutural e da filosofia hegeliana, especialmente no que tange ao conceito de sujeito do desejo e da falta.
É nesse ponto que a filosofia contemporânea, particularmente a tradição continental, encontrou na psicanálise uma interlocutora privilegiada. Filósofos como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari e Judith Butler se apropriaram das ferramentas psicanalíticas para pensar as formas de subjetivação, os mecanismos de poder, as normas de gênero e a constituição do corpo social. Por outro lado, psicanalistas passaram a se valer da filosofia para refletir sobre os fundamentos éticos de sua prática clínica e os limites do saber sobre o inconsciente.
Um exemplo notável dessa interação está na ética. A filosofia, desde Aristóteles, problematiza as noções de bem, virtude, liberdade e responsabilidade. A psicanálise, ao trabalhar com o sofrimento psíquico, as pulsões destrutivas e os sintomas neuróticos, também se vê convocada a formular uma ética própria — uma ética do desejo, como diria Lacan. Nesse sentido, a ética psicanalítica não se pauta por ideais normativos, mas pela escuta do sujeito e pelo respeito à sua singularidade, orientando-se por aquilo que, para o indivíduo, é causa de seu desejo e possibilidade de viver com menos sofrimento.
Outro campo fértil de interação é o da linguagem. Para a filosofia da linguagem, o problema do sentido e da comunicação sempre foi central. A psicanálise, especialmente a lacaniana, entende o inconsciente como estruturado como uma linguagem, isto é, como um sistema simbólico que organiza o desejo e o sintoma. Isso implica que o discurso do paciente — seus lapsos, sonhos, atos falhos — não são ruídos, mas manifestações de um saber que insiste, ainda que deformado, e que pode ser interpretado. Assim, a análise torna-se um trabalho de tradução e escuta, que exige rigor conceitual e sensibilidade ética, algo também valorizado pela filosofia hermenêutica.
No campo político, a interação entre filosofia e psicanálise também se mostra produtiva. A partir da segunda metade do século XX, com os avanços dos estudos pós-estruturalistas, a psicanálise foi convocada a pensar as estruturas ideológicas que atravessam o sujeito, inclusive na forma como ele internaliza normas sociais e exerce o poder sobre si mesmo.
Conquanto muitos pontos de convergência, não se deve ignorar as tensões entre essas duas disciplinas. A filosofia, com sua tendência à sistematização e à busca por fundamentos, podem entrar em conflito com a psicanálise, que muitas vezes opera com categorias ambíguas, paradoxais e movediças. A psicanálise, por sua vez, desconfia de toda tentativa de totalização do saber, pois sabe que há sempre um resto, um ponto de indeterminação que escapa à razão — o real do inconsciente, que insiste em retornar sob a forma do sintoma.
Contudo, é precisamente nessa tensão que reside a fecundidade da interação entre filosofia e psicanálise. Ambas se provocam, se desafiam, se enriquecem. A filosofia fornece à psicanálise instrumentos conceituais e critérios de reflexão crítica; a psicanálise oferece à filosofia uma escuta radical da experiência humana, confrontando-a com os limites da razão e com os abismos do desejo. Essa parceria, longe de ser pacífica, é viva, inquietante, e continua a gerar novos caminhos de pensamento e de ação.
Em tempos de crise subjetiva, de medicalização da vida e de esvaziamento do sentido, a interlocução entre filosofia e psicanálise revela-se não apenas atual, mas necessária.
Em epítome. ambas lembram de que o ser humano não é uma máquina, mas um enigma — e que compreendê-lo requer escuta, pensamento, abertura e, sobretudo, desejo de verdade.
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